Sobre alguns erros passados

———————-De Júlio Carrapato————————–

Aqui impõem-se algumas precisões muito polémicas, mas que, de forma alguma, equivalem a um mea culpa irrisório e deslocado. Conquanto nunca se tenha massacrado, explorado, reprimido ou tiranizado ninguém em seu nome – do que já não se poderão vangloriar nem o marxismo nem o leninismo -, não se vá, contudo, pensar que o anarquismo teve sempre um corpo teórico-prático escorreito e um quotidiano isento de qualquer contradição, o que nem humano seria, além de totalmente incompatível com um movimento em que cada qual pensa pela sua cabeça e não há guardiões da ortodoxia, a despeito das afinidades profundas e de certo fundo comum que tem de existir, sem os quais não há anarquismo, mas apenas um amontoado de pontos de vista. Erros houve, com certeza, e alguns até foram fecundos, porquanto suscitaram a pronta reacção do movimento libertário; outros houve, não obstante, que, sem prejuízo das criticas frontais dos meios acratas, deixaram sequelas graves e grandes cicatrizes. Apontar-se, porém, ainda hoje, apenas as inconsequências pontuais do anarquismo e disso se servir como pretexto para o rejeitar em bloco, ou pretender-se que é irrealizável ou está ultrapassado, é desonesto intelectualmente, eticamente indefensável e equivale a deitar fora o bebé com a agua do banho, muito possivelmente para se ir, seguidamente, engrossar as fileiras do arquismo. Aliás, como pode uma coisa que já foi realizada, ao menos dentro de determinados parâmetros espacio-temporais e em condições superlativamente adversas, ser irrealizável? E como pode estar ultrapassada, se o condicionalismo autoritário e capitalista que a viu nascer e contra o qual ela reagiu, continua substancialmente intocado e qualitativamente o mesmo? Deve ser um grande mistério ditado pela sacrossanta má vontade! Mas como sou o primeiro a rejeitar qualquer infalibilidade, e seria um demagogo ou um animal canonizável, se acaso não o fizesse, vou apenas abordar os aspectos mais contestáveis da acracia, os tais que estão sempre na boca dos seus detractores e, por vezes, sofisticados inimigos, os quais, quase sempre, mais não sabem senão alanzoar isso ou gesticular no vazio e, mesmo assim, de maneira incompleta ou totalmente desgarrada. Vamos lá então examinar esses pontos controversos e dedicá-los aos que pigarreiam ritualmente, mas que, no íntimo, não passam de manequins ou de profissionais da «indignação»:

 1 – Proudhon, como se sabe, foi deputado, em 1848. Pode-se porém dizer, sem risco de desmentido sério e como circunstância atenuante, que, tanto o movimento anarquista quanto o movimento operário, ainda estava na infância da arte e o socialista libertário Francês ainda não terminara a sua terapia pessoal, para ficar completamente vacinado. Todavia, logo em 1849, escreve três violentos artigos contra o príncipe-presidente, o futuro imperador Napoleão III, que lhe valem três anos de prisão em Sainte-Pélagie. Aí escreverá as «Confissões de um revolucionário», onde dirá: «É preciso ter-se vivido nessa câmara isolada das realidades a que se chama Assembleia Nacional, para se conceber a que ponto os homens que mais completamente ignoram o estado de um país, são quase sempre os que o representam». E em 1864, um ano antes de morrer, instado para que desse a sua opinião sobre as candidaturas puramente operárias e respondesse ao chamado manifesto dos sessenta (operários); retorquir-lhes-á, com genuína tolerância, mas combatendo a sua ingenuidade, que, a despeito de reconhecer aos operários o direito a uma representação própria, não podia esquecer que o sistema representativo era uma falácia e que o que achava correcto era a abstenção pura e simples. O que sublinha bem o espírito luciferino de Proudhon e tanto agradava a Bakunine e tanto nos apraz é não obstante, a sua magnifica definição de governado – definição que figura em todas as antologias anarquistas – e a sua compreensão do que é, na realidade, o governo do homem pelo homem: «Oh, personalidade humana! Como é possível que durante sessenta séculos tenhas vivido miseravelmente nesta abjecção! Dizes-te santa e sagrada, e não passas da prostituta, infatigável, gratuita, dos teus lacaios, dos teus monges e dos teus soldados de velha guarda. Sabe-lo e sofres com isso! Ser governado é ser guardado à vista, inspeccionado, espiado, dirigido, legislado, regulamentado, arrumado, doutrinado, pregado, controlado, estimado, apreciado, censurado, mandado, por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude.

Ser governado é ser, a cada operação , a cada transacção, a cada movimento, notado, registado, recenseado, tarifado, selado, medido, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, apostilado, admoestado, impedido, reformado, reeducado, corrigido. É, com o pretexto de utilidade pública, e em nome do interesse geral, ser pedido em empréstimo, exercitado, espoliado, explorado, monopolizado, abalado, pressionado, mistificado, roubado; depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, injuriado, vexado, encurralado, maltratado, batido, desarmado, garrotado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, ainda por cima, jogado, escarnecido, ultrajado, desonrado. Eis o governo, eis a sua justiça, eis a sua moral! E dizer que há entre nós democratas que pretendem que o governo tem coisas boas; socialistas que apoiam, em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, esta ignomínia; proletários que se candidatam à presidência da República! Hipocrisia!…»

Outro aspecto da complexidade da teoria proudhoniana: Proudhon detestava a propriedade visceralmente e proclamava que «a propriedade é o roubo» ou que «a propriedade é o direito ao lucro inesperado». Além disso, enunciava dez propósitos sobre o que considerava a sua «impossibilidade» e nocividade social. Contudo, ao analisar a sorte dos pequenos proprietários – sem títulos de nobreza nem diplomas universitários -, não podia deixar de se opor a que esses desgraçados, ainda por cima, fossem expropriados. Não se sentia obrigado a dar qualquer caução à concentração capitalista e, por conseguinte, falava também dessa «propriedade-liberdade», autêntica força de desconcentração. No mesmo sentido, a maioria dos anarquistas sempre se opôs a «colectivizações», isto é, estatizações compulsivas, evitando as catástrofes que a União Soviética e outros países «socialistas» conheceram.

Que se chame, por causa disto, «pequeno-burguês» a Proudhon, é evidentemente uma enormidade vexatória, digna de um burro albardado, ou uma burrice linearmente dialéctica de quem só compreende a linguagem do ferro contra ferro e não pode entender o autêntico pluralismo.

Já mais grave é a relutância de Proudhon em reconhecer nas greves a forma normal de relacionamento entre capital e trabalho, chegando até a desaprová-las expressamente. No seu íntimo, tal como Fourier, receava as revoluções – embora as apoiasse quando eclodiam e dissesse, muito libertariamente, que não eram obra de ninguém em especial – tantas vezes seguidas de reacções e de contra-revoluções e procurava evitar os afrontamentos apocalípticos entre patrões e a sua tropa de choque, por um lado, e assalariados, por outro, até porque o desfecho era incerto e seria condenável empurrar alguém para o desconhecido. Além disso, ao promover a ideia autogestionária, o associativismo operário, e o arranque construtivo da sociedade futura, a partir da oficina e das unidades produtivas em geral, pensava encaminhar tudo assim, mais seguramente, de maneira mais gradualista, para o desfecho desejado. A história, de qualquer forma, ainda não decidiu quem estava certo, se o gradualismo, se o insurreccionalismo, se, muito possivelmente, os dois, conquanto chegue sempre o momento em que é necessário afrontar directamente o Estado e o Capital. E de nada servirá pôr paninhos quentes ou iludir a questão, porque o que nós queremos, a anarquia, é objectiva e redundantemente revolucionária e está em manifesta e insolúvel contradição com o que domina e predomina no mundo que conhecemos.

Nenhum destes aspectos mais controversos, porém, impediu Proudhon de ser uma das futuras referências para todo o movimento sindicalista revolucionário ou anarco-sindicalista, o qual nunca receou as greves, com ou sem pré-aviso, «políticas» ou económicas, revolucionárias ou alimentares, qualitativas ou quantitativas, gerais ou parciais, com ou sem ocupação dos locais de trabalho, activas ou passivas, expropriadoras ou não…

 2 – Émile Henry, ao fazer explodir uma bomba no café Terminus-Saint Lazare, que provocou vários feridos, e ao defender-se, de revólver em punho, contra os que o queriam capturar, excede, no pior sentido, o atentado anarquista da «era dos atentados» e o simples tiranicídio. De idêntico modo, age Giuseppe Marini, em 23 de Março de 1921, no atentado contra o Diana, que provocou inúmeras vítimas. Claro que é fácil justificar o «acto exemplar» ou a «propaganda pelo acto», para alguns, com razões exteriores ao próprio acto e causas, por vezes remotas: o meio sócio-político-económico; o abatimento que reinava nos meios proletários, após o esmagamento da Comuna de Paris (o atentado de Henry data de 1894); a selvagem repressão das greve e dos actos menos conformistas, por parte das forças da desordem institucionalizada; a prisão de Malatesta, no seguimento do movimento das ocupações, que Mariani queria vingar; etc., etc. E argumentar, ante o tribunal, com muita coragem, é certo, mas com contrasensos ou meias-verdades do seguinte teor: «não há inocentes entre a burguesia»; ou dizer apenas que a pequena-burguesia ainda é mais preconceituosa, estúpida e conservadora do que a grande, o que, ao que parece, justificaria o seu abate indiscriminado – manifestamente não chega, além de chocar frontalmente com princípios nossos tão fundamentais como o da responsabilidade individual e não colectiva ou o do acordo indispensável meios-fins. É certo que Émile Henry vivera uma vida de exilado com o pai, a seguir à Comuna, e era um rapaz justo, inteligente, culto e exasperado e que os magistrados que o condenaram à morte eram, certamente, muito piores do que ele, até porque se lhes aplica plenamente o que Kropotkine escrevera, no livro que dedicara ao submundo carceral: «Hoje, a prisão é possivel porque, na nossa sociedade abjecta, o juiz pode descartar-se num miserável assalariado da função de carcereiro ou de carrasco. Mas se o juiz tivesse que montar guarda ele próprio junto dos seus condenados e, segundo um costume da Antiguidade, muito justo em meu entender, cortar ele mesmo as cabeças que sentenciou que se abatessem, podeis ter a certeza de que esses juizes achariam as prisões insensatas e a pena de morte criminosa». É certo, igualmente, que Giuseppe Mariani não buscou circunstâncias atenuantes nem pediu cle mência ao fascismo, dizendo que o acto fora impensado ou que os resultados haviam excedido tudo o que pudesse desejar. Aguentou vinte e cinco anos de prisão e de deportação e só depois de cumprida a pena reconheceu o grave erro.

Em meu entender, porém, também aqui não há que cair na demagogia, na violência estética ou na estética da violência, nem que ceder ao encanto discutível do dandismo dos «revolucionários» de salão. Há que dizer bem claro que actos como o de Émile Henry ou o de Giuseppe Mariani – precisamente aqueles que certos situacionistas de pantufas mais apreciam – se aproximam mais do surrealismo do que do anarquismo; sobretudo quando André Breton escrevia que, neste mundo horrível, em que vemos lado alado a «vida sórdida» e o «amor sublime», o acto surrealista puro consistiria em descer à rua e começar a disparar sobre os transeuntes[1]. Na obra «O homem revoltado», Albert Camus respondeu-lhe que ele já devia estar arrependido das insensatas palavras proferidas, mas que, a coisa não devia passar de fraseologia; já que Breton, pelo que sabemos, a par de reais qualidades, era um homem pacato que até nem tinha posto os pés na guerra civil espanhola, desculpando-se com a filha, mau grado os incitamentos de Benjamin Péret, maravilhado com a acção revolucionária dos anarquistas. E o nosso amigo Amedeo Bertolo, num belo artigo publicado na «Revista Anarchica», argumentou que, depois de épater le bourgeois, não se deve cair na infantilidade de querer impressionar os próprios companheiros, isto é, épater l’anarchiste, exercício obviamente cansativo e repetitivo, e que nos leva aos campeonatos intermináveis e ridículos de ver quem é mais acrata dos dois: eu ou o meu gatinho? O que deve haver, agora e sempre, é maturidade (e não conformismo!) e um inalienável sentido da medida

Dou-vos ainda dois exemplos, como é hábito, mas desta feita de sinal contrário. Houve sempre anarquistas, e dos maiores, que não podem considerar-se frouxos ou tíbios, embora avessos a exibicionismos ou machismos, como Malatesta, que reprovaram vários «actos exemplares», embora nunca negando a solidariedade devida aos presos nem embrenhando-se em duvidosas considerações, mais ou menos maquiavélicas e nada libertárias, de oportunidade táctica. Ao invés, logo a seguir à morte de Franco, a C.N.T. promoveu alguns dos maiores comícios, encontros, reuniões e exposições do pós-franquismo, unanimemente silenciados pelos servos da imprensa acagaçada e atónita; mas, é claro, tinham logo que aparecer as provocações policiais e alguns dandies do pistoleirismo e de uma acção directa muito sui generis e subjectiva, que tomaram como principal alvo a própria organização anarco-sindicalista. Clamavam, disputando o conhecido campeonato, que eles é que eram os verdadeiros anarquistas, enquanto os outros não passariam de uma multidão de «reformistas». Até parecia que o seu objectivo não era congregar pessoas e vontades, mas fazer debandar ou cansar toda a gente. Depois, foram presos e encolheram-se sob a asa protectora da C.N.T.; hoje, devolvidos à «liberdade», dão vivas à democracia pós-moderna, renovada e participativa! Miserer!

 3 – Kropotkine e outros anarquistas, como Jean Grave ou Charles Malato (Manifesto dos dezasseis), tomaram posição a favor da França e dos aliados, na guerra mundial de 1914-18. Como a Alemanha já triunfara em 1870, na chamada guerra franco-prussiana, anexando a Alsásia e a Lorena, em 1871, receavam que nova vitória alemã viesse agravar o desequilíbrio europeu e estender o bismarckismo e o militarismo prussiano, e optavam com demasiada desenvoltura e leviandade pelo famigerado «mal menor». E é tudo o que os detractores da vida e da obra de Kropotkine sabem ou até querem saber, como certas virgens suspeitamente intocáveis, atirando-o, bem como o anarquismo, para as urtigas ou para as gemónias. Depois, como Kropotkine pertencera à alta aristocracia russa e até fora, durante a juventude mais balbuciante, membro da academia militar e cadete do czar – tudo coisas com que ele inapelavelmente romperia, ao contrário de toda uma série de personagens obviamente excelentes -, pensam denegri-lo, ao lembrar a sua alta extracção social (príncipe!), e põem em dúvida, caricaturalmente, a sua ulterior «filantropia» e a sua «alta moralidade». Mas que infantilidade! Oh sancta simplicitas!

Para começar, Kropotkine, além de cortar cerce com o berço de oiro e de extirpar o cordão umbilical, partiu precipitada e clandestinamente da Rússia e viveu na Europa ocidental uma vida plena, consagrada ao trabalho para sobreviver, à agitação, à propaganda, ao estudo e à reflexão fecunda. Só pôde voltar, após vicissitudes várias vividas em França e na Grã-Bertanha, à Rússia natal, em 1917, pondo termo a uma existência de emigrante, que começara em 1876. Seguidamente, no ocaso da vida, ainda chegou a ser convidado para ministro, segundo consta, primeiro por Kerensky e, ulteriormente, pelo próprio Lénine; mas declinou sempre essas «honrarias» com grande coerência e dignidade. Quanto à sua tomada de posição a favor de um dos beligerantes, o movimento anarquista internacional, na sua maioria, rejeitou liminarmente a opção momentânea do velho acrata, apesar da influência e até do fascínio intelectual e ético que este exercia nas suas fileiras e muito para além delas. Num artigo intitulado «Os anarquistas esqueceram-se dos seus princípios», publicado em Londres, em Novembro de 1914, pelo jornal «Freedom», escreve Malatesta: «Embora corra o risco de passar por simplório, confesso nunca ter crido possível que socialistas – ou até mesmo sociais-democratas – tivessem aplaudido e participado voluntariamente, quer ao lado dos alemães quer ao lado dos aliados, numa guerra como a que está a devastar a Europa. Mas que dizer então quando este empenho é adoptado por anarquista, pouco numerosos, é verdade, mas entre os quais se encontram companheiros que amamos e respeitamos profundamente?» E em Março de 1915, era dado à estampa o «Manifesto anarquista internacional contra a guerra», no qual se martelava que não se podia tomar posição num conflito entre Estados e que termina deste modo: «Devemos aproveitar todos os momentos de revolta e todos os descontentamentos, para fomentar a insurreição e organizar a revolução, para a qual olhamos, para que ponha cobro a todos os males sociais. Nenhum desencorajamento, mesmo ante uma calamidade como a presente guerra. É em períodos tão turvos, em que muitos milhares de homens dão heroicamente as próprias vidas por uma ideia, que devemos mostar a esses homens a generosidade, a grandeza e a beleza do ideal anarquista: a justiça social realizada, através da livre organização dos produtores; a guerra e o militarismo escorraçados para sempre; e a completa liberdade vitoriosa, pela abolição do Estado e dos seus órgãos de destruição». Seguiam-se trinta e seis assinaturas, que deviam citar na totalidade, mas de que destaco as de Enrico Malatesta, Alexander Berkman, Emma Goldman e Domela Nieuwenhuis. Mas muitas mais reacções antibelicistas houve, e algumas até ferozmente irónicas, como um formulário de subscrição, publicado em «O que é preciso dizer», órgão pacifista e antimilitarista de Sébastien Faure, em que vinha escrito: «Para que Grave rebente: 0,50»… Para cúmulo, Jean Grave era operário e não príncipe. Decididamente, estes anarquistas, quando levam a sua lógica até ao fim, não respeitam nada nem ninguém, nem mesmo o operariado!

 4 – A organização anarco-sindicalista espanhola, C.N.T., contrariando toda uma prática de dezenas de anos, participou com 4 ministros, em plena guerra civil, no governo de coligação chefiado pelo socialista Largo Caballero; sendo dois deles da tendência mais sindicalista revolucionária ou autosuficientemente sindicalista (Juan Lopez e Juan Peiró) e os outros dois da tendência mais anarco-sindicalista ou anarquista (Federica Montseny e Garcia Oliver). No entanto, ainda que ministros, todos eles eram indivíduos honestos, sendo, por exemplo, juan Peiró um economista autodidacta que se esforçou por que nada faltasse às colectividades e a autogestão não fosse ainda mais sabotada, após o que seria mandado fuzilar por Franco, nos anos quarenta (1942), na prisão de Valência, por se recusar a organizar os sindicatos verticais e corporativos do regime fascista. Quanto a Garcia Oliver, amigo e companheiro de Buenaventura Durruti e Francisco Ascaso – muito possivelmente os dois maiores e mais inteligentes homens de acção do movimento libertário espanhol deste século (XX) que, com Gregório Jover, até tinham assaltado bancos, para alimentar as caixas confederais -, fora sempre considerado um fora-de-lei, quer pela monarquia quer pela república quer pela frente popular, participara em insurreições e conhecera períodos de prisão, para ir ingloriamente aterrar na qualidade de responsável pela pasta da Justiça, na respectiva cadeira ministerial!

Ora bem, todo este arrazoado, que não é ditado por nenhum complexo de culpa, nem pretende desculpar quem quer que fosse diante de quem quer que seja, deseja apenas narrar o maior erro de toda a história do movimento acrata internacional e salientar o que parece óbvio: nenhum dos «ministros anarquistas» e restante séquito era movido por razões de interesse pessoal e confederal, por sede de poder e razões de mando, antes fazendo um grande frete e cedendo a inúmeras pressões; a participação dos anarquistas no governo de coligação, ao lado de contra-revolucionários notórios como os republicanos, os socialistas e, sobretudo, os estalinistas, enquanto cá fora tentavam o mais possível fazer avançar a revolução libertária e igualitária, contra ventos e marés, não ficou a dever-se a nenhuma involução longamente amadurecida e premeditada do seu ideário teórico e da sua conduta prática. A despeito de alguns desses «responsáveis» terem depressa aprendido a linguagem desses lugares tão pouco recomendáveis – o que só prova que nem os anarquistas podem e devem conquistar o poder, mas sim neutralizá-lo -, parece que, ao invés, na base desastrosa e inconcludente participação, como era de esperar, estiveram:

1.      A conjuntura internacional extremamente desfavorável, consubstanciada no fascismo, no estalinismo e no capitalismo clássico;

2.      A dificuldade em obter, por um lado, armamento junto de fornecedores que preferiam, de longe, a vitória de Franco ao triunfo da revolução, já que nenhuma solução intermédia ou sintética de compromisso era possível e, por outro, em encontrar mercado externo para os próprios produtos;

3.      A impossibilidade material e física da CNT, da FAI e dos libertários em geral ganharem, ao mesmo tempo, uma guerra contra Franco (e contra o mundo) e uma guerra civil dentro da guerra civil, porquanto nem maioritários eram dentro de todas as regiões de Espanha;

4.      A pressão dos próprios trabalhadores, que queriam que as suas organizações mais autênticas não ficassem eternamente de fora, aguentando as chantagens e as sabotagens dos políticos profissionais, o que não exclui sérias responsabilidades de finos manobradores como Horácio Prieto e outros anarco-sindicalistas mais. E um corolário parecia resultar de tudo isso: como, entretanto e no sentido oposto, as massas anarco-sindicalistas, quer no trabalho quer na frente de guerra, estavam a influenciar e a contagiar pelo exemplo a totalidade dos trabalhadores; se Franco fosse derrotado e com a sua derrota fosse afastada metade da ameaça, o afrontamento diferido e final talvez tivesse lugar, em condições mais favoráveis.

Como seria de esperar, foram inúmeras, dentro do meio anarquista, quer a nível nacional quer a nível internacional, as reacções desfavoráveis a uma colaboração tão contra natura. Durruti, à cabeça da coluna que participou logo no início na salvação de Madrid, após as vitórias que obtivera na frente aragonesa, era contrário à participação governamental e insurgia-se contra os pretensos direitos das maiorias confederais. No auge da desesperança e do furor lúcido, ainda pensou em assaltar o banco emissor, para comprar directamente armas no estrangeiro com todo o ouro espanhol. Infelizmente, não pôde fazê-lo, por razões de vária ordem e exteriores à sua vontade! Depois da sua morte, organizações como «Os amigos de Durruti» e outras mais mantiveram acesa essa chama. A celebérrima Coluna de ferro, na qual participavam inúmeros ex-presos da cadeia de San Miguel de los Reyes, bateu-se até ao fim contra a militarização das milícias e o esmagamento do entusiasmo e da espontaneidade populares. Camilo Berneri, no jornal «Guerra di classe», publicava artigos que estabeleciam o paralelismo entre Petrogrado, em 1917, e Barcelona, em 1937, bem como a famosa e clarividente «Carta aberta à companheira Federica Montseny», saída do prelo em 14 de Fevereiro de 1937. E o velho anarquista francês Sébastian Faure – para só mencionar alguns dos críticos – acrescentava passionalmente que os nossos princípios, ou valem alguma coisa e são aplicados até ao fim ou nada valem e não podem ser aplicados, o que constitui para um só caso concreto uma dicotomia demasiado absoluta, que não tomava em consideração, nem factores históricos nem os conjunturais nem a correlação de forças, mas que traduz o desespero vivido naqueles tempos.

Já os nossos velhos inimigos trotskistas e assimilados ironizam sobre a efémera colaboração dos libertários com o pleonástico «governo burguês», coisa que, é claro, eles nunca fariam, mau grado advogarem o entrismo permanente e, para os momentos culminantes, a colaboração duradoura com o contraditório «governo revolucionário», auge da revolução formal. Mais espertinhos, mas igualmente mal intencionados, vêm a seguir quantos falam na liquidação do movimento acrata, morto e sepultado em Espanha, providencialmente perdido para o tempo e para o mundo, mais desacreditado e carregado de pecados do que o bode de Azezel; conquanto admitam que os grandes coveiros da revolução Espanhola tenham sido os estalinistas, que a roeram e corroeram por dentro, como um cancro. É o caso dos conselhistas marxistas da escola de Pannekoek ou de Mattick que, na altura, nem os pés puseram no vespeiro espanhol, mas têm sempre lições a dar. A despeito de já terem rompido com o leninismo, o que já não seria assim tão mau, continuam a ter o desleixo intelectual do marxismo e a sua indigência mental. Falam de um Proletariado que, mau grado nunca se deixa enganar, é constantemente enganado por toda a gente, inclusive pelos anarquistas. Têm um ódio visceral aos sindicatos, que apresentam invariavelmente como «armas do capital» – o que, de certo modo, está certo, se olharmos para os sindicatos de hoje, que representam o patronato junto do operariado e não o inverso, além de participarem na co-gestão dos organismos «sociais» do Estado – e com a sobranceira e ignorância que os caracteriza, metem o anarco-sindicalismo no mesmo saco, sem verem que até o sindicalismo revolucionário é diferente das agremiações e corporações hodiernas. Têm, porém, uma mezinha válida para tudo, mais eficaz que o elixir do dr. Doxey: os conselhos operários e a sua refinada forma de poder. Só lhes faço uma pergunta: então porque é que as colectividades espanholas funcionaram muito melhor e durante muito mais tempo do que os sovietes da Revolução Russa ou os conselhos operários da Baviera? Porque é que foi precisamente em Espanha, capital mundial do anarco-sindicalismo, que ocorreu algo em relação ao qual a própria Comuna de Paris parece um fenómeno menor? E acho que chega.

Há, no entanto, ainda o caso dos analistas brilhantemente superficiais da Internacional Situacionista, ou do que dela resta, e de quantos participam na mesmíssima idolatria do tal proletariado desencarnado e respectiva iconografia, caindo, de igual modo, no idealismo semântico ou no socialismo nominal, segundo a saborosa expressão de Abrahan Guillen. À sua maneira, alambicada e cheia de trocadilhos que soam bem ao ouvido, participam na sacralização de uma teoria «musical», cheia de incongruências, aliás, e de pseudo-ultrapassagens ou de pseudo-reconciliações (entre Bakunine e Marx, por exemplo), em relação ao chamado «anarquismo histórico». Na prática, contudo, não têm referências nem história própria, além de derem incapazes de deslocar uma vírgula do discurso de Debord ou de Vaneigem. A todos eles respondia eu, numa simples nota de rodapé ao livro de Abel Paz, «O povo em armas – Buenaventura Durruti e o anarquismo espanhol», que traduzi e foi publicado em Portugal, em 1976:

«Fazendo tábua rasa da prática anarquista espanhola desde os tempos da Primeira Internacional, é nesta atitude suicida e desesperada que se baseiam os modernos inimigos do anarquismo, para o denegrir venham eles do marxismo «libertário», do «movimento comunista», do conselhismo, do «movimento real», do situacionismo ou da ultra-esquerda literária. / Claro que não os embaraça, primeiro, atacar frontalmente o anarquismo e, depois, vir subtilmente plagiá-lo ou, indirectamente, louvá-lo. Em geral, caem numa curiosa dicotomia:

1)      Quando dizem que nunca os Conselhos Operários funcionaram no mundo como em Espanha, quando acrescentam que nunca, como em Espanha, houve uma autogestão generalizada, quando gabam a acção dos revolucionários espanhóis (que tiveram que bater-se em todas as frentes contra fascistas, democratas, estalinistas, etc.), mencionam da seguinte maneira os fautores do gesto sublime: os trabalhadores, /

2)       Quando falam na colaboração governamental, no acatamento, apesar de tudo, da militarização das milícias, etc., de significativa maneira apresentam os culpados: os anarquistas. / Deste modo, responsabilizam os «trabalhadores» por umas coisa e os «anarquistas» por outras, ainda que, na prática, anarquistas e trabalhadores «coexistam» nas mesmas pessoas físicas! / Ainda há pouco tempo, tivemos um exemplo dessa mentalidade rasteirinha. Depois de um prefácio inqualificável, apresentaram os meramente doutrinários aqui postos em causa uma recolha de textos, em língua portuguesa, onde o autor, Vernon Richards, é crítico em relação aos anarquista espanhóis. «Esqueceram-se» foi de mencionar que o autor (de cujo nome abusivamente se servem) é anarquista, sendo em nome do anarquismo e da exactidão das suas ideias que o critica. A edição integral do livro «Lessons of the Spanish Revolution» traz de resto, logo em epígrafe uma frase de Maria Luísa Berneri: «A partir do ângulo anarquista e sem que nos estorvem pseudo-lealdades nem considerações de oportunidade, mas, ao mesmo tempo, modestos e compreensivos, assim é como nos deveríamos propor para deduzir os ensinamentos da revolução espanhola. Estou convencida de que mais desmoralizaria e debilitaria o nosso movimento uma admiração carente de espírito e cega do que a franca admissão dos nossos erros passados».

E basta!


[1] Claro que qualquer surrealista, dadaista ou situacionista pode dizer isto ou algo ainda pior, na tentativa esforçada de se singularizar ou de se tornar mais «interessante». Por isso mesmo, tais correntes situam-se no terreno e no combate meramente cultural, onde é de bom tom vociferar muito «radicalmente». Já o anarquismo, que transcende a perspectiva narcísica e se situa no terreno social, não pode permitir-se essas inconsequências… Até porque não se limita ao «tremendismo» e a tonitroar! Em geral, promete e, modestamente, faz!

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